“Diário”, por Fernando Burjato

Galeria b_arco
4 min readSep 1, 2021

Tenho a alegria de participar da exposição Dizer Não. A mostra tem a organização de Adriana Rodrigues, Edu Marin, Érica Burini e Thaís Rivitti, e reúne obras de 47 artistas, num galpão na Barra Funda, na Rua Cruzeiro, 802. Esse endereço agora passa a abrigar o Ateliê 397, um espaço independente de arte que tem feito uma bela história nos últimos dezenove anos. Meu trabalho está em ótima companhia.

Exponho 36 desenhos que fazem parte de uma série que chamei de Diário. No começo da pandemia me vi fechado em casa com minha família, aliviado por ter onde morar, ter como sobreviver e por estarmos todos bem, mas perplexo com o que estava acontecendo no mundo e, em especial, com o modo como a sociedade — e nosso infame governo federal — respondia a tudo isso.

Nunca tive o hábito de assistir televisão, mas nesses meses me vi grudado na tela, esperando por alguma novidade, atento às palavras de epidemiologistas, infectologistas e outras autoridades em vírus e doenças que aos poucos foram se apresentando como se fossem figuras conhecidas, assim como os jornalistas. Suas caras foram se tornando cada vez mais familiares, enquanto a gente ia se lembrando menos de outros rostos, que antes configuravam nosso dia a dia.

Quando percebi, desenhava essas pessoas, com caneta, num caderninho. Não imaginando que isso seria parte de um trabalho. Era como uns fazem tricô e outros, palavras cruzadas. Ou como aqueles presidiários dos filmes, riscando nas paredes. Nunca procurei imagens na internet, nunca pausei vídeos. A ideia era desenhar ao vivo, à medida em que as coisas aconteciam, numa espécie de jogo.

A execução desses desenhos, penso agora, foi possível porque a própria televisão ficou mais estática, com os comentaristas em suas casas, mostrando pouco mais que seus rostos, surpresos, como os nossos. Assisti a algumas palestras e debates na internet e, novamente, havia uma só câmera fechada no rosto de alguém. Eu me vi intrigado pelo formato das narinas, pela assimetria dos olhos. Tinha algo de hipnótico nisso, em observar um rosto falando.

O hábito de datar o que faço me acompanha faz tempo. Mas acho que aqui as marcações de tempo têm outro significado. Elas situam os desenhos de acordo com a repercussão pela morte de George Floyd, as eleições nos Estados Unidos, a live de Caetano Veloso, a nossa Comissão Parlamentar de Inquérito, além do próprio avanço da pandemia, servindo de pano de fundo de todo o resto. Por isso, decidi mostrar os desenhos em ordem cronológica. Assim, de alguma forma, convido o espectador para refazer mentalmente esse período tão intenso quanto estranho.

Se esse Diário não se assemelha, ao menos de forma imediata, às minhas obras mais conhecidas — pinturas com áreas de cor e muita tinta –, é talvez porque surgiu dessa maneira, quieto, sem querer ser arte. Ele tem um caráter descritivo, ilustrativo, que meus trabalhos não costumam ter. Acredito que com o tempo as semelhanças entre essa série de desenhos e toda a minha produção vão surgir, aparecendo a política nos quadros abstratos e o pictórico nos retratos.

Tendo a evitar uma arte panfletária. Penso que a ambiguidade é mais rica que minhas convicções, e que a incerteza que meu trabalho possa carregar seja maior que aquilo que penso. Isso não é uma negação do caráter político da arte e de seu poder transformador. Pelo contrário.

Quando fui convidado a participar dessa importante exposição, olhei, pela primeira vez a totalidade dos desenhos. Eram mais de noventa, até aquele momento, e eu não poderia colocar todos na mostra. Foi difícil decidir quais entrariam. A escolha não foi tanto pela qualidade, mas pela relevância dos retratados. Como desenhei certos jornalistas várias vezes, em diversos dias, com roupas e cabelos diferentes, optei por apresentar apenas uma imagem de cada — e mesmo assim, muitos ficaram de fora. Lamento não ter a repetição de personagens, isso dá uma cadência interessante ao grupo, em minha opinião: uma jornalista falando hoje, ela novamente depois de amanhã, com outro penteado, com outra roupa.

Entre os políticos e outras figuras públicas, também fiz exclusões difíceis. Não quis inserir apenas figuras com as quais simpatizo, pois muitos personagens que desprezo, ou a quem sou indiferente, cumprem papéis importantes nesse período. Encarei como se pintasse a paisagem de um lugar: não se omite uma árvore ou um edifício porque não nos agrada.

Ainda penso em mostrar, numa outra circunstância, o Diário numa versão estendida — essa paisagem num panorama mais largo, com mais figuras.

DIZER NÃO

Exposição com 47 artistas

Adriano Machado, Ana Dias Batista, André Komatsu, Bertô, Bruna Kury e Gil Porto Pyrata, Cildo Meireles, Clara Ianni, Craca e Raphael Franco, Cuca Ferreira, Daniel Jablonski, Denise Alves-Rodrigues e Pablo Vieira, Edu Marin, Elizabeth Slamek, Fernando Burjato, Flora Leite, Frederico Filippi e C. L. Salvaro, Graziela Kunsch, Isael Maxakali, JAMAC, João Loureiro, Juçara Marçal, Kadija de Paula & Chico Togni, Kauê Garcia, Laura Andreato e MuitasKoisas, Leda Catunda, Lia Chaia, Lícida Vidal, Lucimélia Romão, Marcelo Amorim, MUSEUL*RA, Paola Ribeiro, Rafael Amorim, Raphael Escobar, Regina José Galindo, Rochelle Costi, Shima, Sol Casal, Vânia Medeiros, Wagner Pinto.

22/07 a 19/09
quinta e sexta 14h-18h
sábado e domingo 11h-19h
R. Cruzeiro, 802 — Barra Funda. São Paulo.

Apoio: @atelie397abacashi.com/p/dizernao

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Galeria b_arco

Fundada em 2002 por Izabel Pinheiro, a Galeria b_arco se dedica à produção brasileira contemporânea, visando a diversidade regional e de linguagens.